segunda-feira, 18 de outubro de 2010

um declive

(Zao Woo-Ki)




    desço um declive da vida. A encosta já foi alta, subi-la foi penoso e irremediável era a subida. Um fio de corda lançado pela mão invisível estava sempre mais além, mas tão próximo que desperdiçá-lo seria perder uma das frágeis oportunidades da vida. Por isso, continuava essa subida avassaladora receando perder uma grama de qualidade moral se, por cobardia, colhesse distraidamente flores em vez de, dextra e firmemente, agarrar o metro seguinte de corda virgem que se estendia frente a mim.
 Colhi apenas as ervas que me alimentariam na subida, esfreguei as mãos na resina para que não me resvalasse a corda.
  No alto da montanha, olhei em volta os horizontes ganhos e não cantei vitória. Emocionei-me comovidamente pelo espectáculo pleno que contemplava. Ah, mas mesmo essa embriaguez desprendia gotas de suor que me queimavam o corpo como o faz o orvalho às frágeis plantas.
  E logo a terra da descida se me mostrou húmida e escorregadia sob a nudez dos pés. E já sem esforço algum, o corpo ia descendo, perdendo a altitude e só na memória trazendo a perfeição do espectáculo.
  Agora no declive, olho para os frutos que trago. Tenho roxos os dedos das carnudas amoras e quando caiem por terra e, sem querer, as esmago, fica um solo de batalha, da batalha que foi, feroz e ensanguentada.


  (Página de um diário de 1987.)