terça-feira, 29 de dezembro de 2009

«A hora do deslumbramento»

(Vincent Van-Gogh)




a hora de morrer, como uma estrela
devolver os átomos ao espaço
tornar-se uma serena anã branca
uma terrível estrela de neutrões
ou um infidável buraco negro





G.M.

lágrima

(Pablo Picasso)



uma lágrima corria
de um lugar que não sabia
em que lonjura existia

mas a lágrima não dizia
a ninguém o que fazia
só corria só corria

e chorando eu lhe pedia
me dissesse o que queria
a lágrima não respondia

e por mim
que triste a via
só corria só corria



Monserrate


MONSERRATE seria o silêncio
a contemplação das formas
grotescas e naturais

lá,onde monges invisíveis
procuram o arrepio de Deus,
encontrámos a festa
o desassossego dos homens
por entre os pilares austeros
do Universo

G.M.

Museu Dali, Figueras

(Salvador Dalí)



DALI recolheu-se em Figueras
sem cermónia
instalou a desordem

sob os ovos genésicos
e o ballet dos corpos
o pontífice
erigiu a sua igreja
e, em altares de culto,
guardou as obras da doutrina onírica
e o seu túmulo
em incómodo eterno



Barcelona


BARCELONA era a desejada
o pinhão por partir
a música de porcelana a descobrir

Barcelona espreitou
por entre paredes negras
de ruas medievais
por naves eternas
que erguem catedrais

em Barcelona, o parque
os ondulados bancos de um jardim suspenso
os rostos que Gaudí deu às árvores

Miró se pôs lá no alto
papagaio de papel vermelho e azul
a roçar no ombro amarelo do Sol

G.M.

poema


que o poema venha
do profundo
selvagem e natural
como a carícia
em incêndios
de véus e de névoas
e corra
como água clara
sem nódoa original

G.M.

o coco


(Paul Gauguin)



suga-se lesto o leite
a água interior
a transparência
que se dissolve em nós

a casca quebra-se
a golpes de violência
a dureza contra a protecção
e os pólos belos e glaciares
são longínquos lugares
ainda por tocar

branco e duro
luzidio e arrepiante
o espectáculo do momento
antecedendo o banal acto
do ralado de coco



Tejo


Tejo, Tejo,
brando demais
doce demais
imenso e igual

essa água em ti,
eu sei,
é como qualquer água
penetrável, fácil
mas esse encanto
descuidado
nos afoga

G.M.

frustração de Inverno


abre-se no tempo
o buraco do nada

e o nada
é o não desejo
o não sonho
o não signifcado
de todas as coisas

a ternura
caiu no abismo
e se fez nada
e se desfez

e o bem que fez
não é fogo já

que importa o momento
do ano que passa
se o tempo que passa
não lembra o amor
e não aperta
no lugar que pode
abrir para amar

G.M.

melancolia





as folhas de Outono
que nunca vira antes
caiem sobre mim
que penso
triste
no meu corpo morto
que não olhará
as folhas de Outono

as folhas de Outono
mexem no chão
mexem
secas e mortas
não estão mortas
as folhas de Outono

os corpos mortos
mexem ao vento
o vento os leva
e com carinho
os obriga à vida
o vento





segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

o pão e o salmão

(Paul Cézanne)



(à maneira de Nicolau Tolentino)

Refastelado em ampla travessa
jazia um pão enigmático
que as convidadas em retardado passo
olharam com gesto sintomático

Após meditação em versos de Che,
a anfitrã deu início à cerimónia
e em golpes rectos transversais
fez cesariana com parcimónia

Eis senão quando, caso pouco visto
um peixe suculento e bem roliço
surgiu dentro do pão untado e quebradiço

Para quem não sabe, fica esta lição
se em mesa de festa houver só um pão
pode ganhar esperança num róseo salmão



deambulações em volta de uma imagem de Novalis

(Salvador Dalí)




frente ao corpo esfíngico
entro desveladamente
no templo do meu corpo

só alguns corpos são templos vivos
mas o templo é o lugar do mistério
da ausência

todo o corpo é um templo em construção eterna

que dizem os sábios das ruínas do templo?
a presença do enigma permanece
nos destroços abandonados do templo

o amor é a contemplação da miragem
do templo sagrado

o tempo da união dos corpos
rasga um clarão de júbilo
na penumbra dos templos

é breve o conforto
da oculta face do deus
venerado no templo

em vão mergulho o meu corpo tenso
no regaço amplo
do templo




não não sou uma pessoa




não poderei dizer que sou uma pessoa

sou um  misturador um triturador
sou uma espécie de fábrica de pasta de papel

a minha matéria é uma grande membrana porosa
que realiza permanentemente
uma incansável função de osmose

sou o silêncio que na noite sussurra
o inaudível ruído das esferas

sou o sono
que é a capa perfeita dos voos infinitos
nos espaços de além

sou a água da fonte
que se desfaz constante
no húmus da mãe

sou o vento
que leva as areias
e gera no ventre
as dunas e as praias onde o mar refreia

não não sou uma pessoa não

sou o centro magnético
que espraia raízes como feixes de luz
no infinito de todas as direcções



nenúfares

(Claude Monet)



escuta, meu amor, os ecos
fundos das palavras
nenúfares
segredos do lago

poucas palavras plantas
florescem na água

soam, meu amor, raízes
esparsas de palavras
sondas eternas
no suor dos corpos
mergulhadas






terça-feira, 22 de dezembro de 2009

ladrão de presépio




 
ladrão de natal
o roubo do burro
tornou-se notícia 
de telejornal
neste país
que é Portugal

quem roubou o burro
era um brincalhão
ou queria
na fuga p'ró Egipto
montar papelão
ou p'ra aumentar a confusão
somar mais um caso de corrupção

no Chiado em Lisboa
palpita o coração
o ladrão do burro
ou roubou a imagem
da sua paixão
ou era um comerciante
que só queria atrair
mais população




terça-feira, 15 de dezembro de 2009

brincadeiras de natal

                      
                                   




1.
traz o pai natal no saco
um gancho d'ouro
e nele prende em cada chaminé
as invisíveis escadas
por onde,pé ante pé,
passará de leve
algum tesouro

2.
quente a lareira aquece os velhos
rangem os artelhos no dia de natal
mas um sorriso liso alisa os lábios
murchos e secos de sede vegetal

3.
no natal a baba congela
nos dentes sujos do monstro
e os rijos maxilares
rangem de dor e desgosto

4.
brilha na serra
um raio do Sol
e da neve nasce uma gota
e enche a bilha
com que o pai natal
refresca a boca

5.
brancos são os campos
e os arvoredos
no natal a neve
cobre branca os medos

6.
escorrega o natal
dos dedos dos meninos
que desenlaçam os laços
das oferendas

natal natal
veloz a voz
da litania em coro
desembrulha o sonho de papel
guardado no coração
das prendas




segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

inquietação


pelo inesperado me inquieto
e na inquietação preparo
o que não sei se espero

movo os dedos
que o coração aperta
e teço o pano longo
onde o acaso dirá
se passará meu corpo

G.M.

domingo, 13 de dezembro de 2009

passageiro

sou o passageiro
de um barco à vela
o vento empurra
o barco que me leva

o sofrimento é o meu mantimento
o pão azedo que me é dado no mar
aceito e como e choro
e encontro o sabor
que a lágrima dá

G.M.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Berlenga


Berlenga, a grande,
labiríntica orquestra
de vozes de gaivotas
caindo abruptas sobre o mar

Berlenga, a água verde
recolhendo-se nas grutas
espreguiçando os braços
no maternal regaço

nas noites da Berlenga
rugiam ventos nas rochas
 [e nas águas]
e soava perfeito o choro da pardela
no silêncio assintoso do castelo

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

rua de montemor


rua velha lateral
rua do colégio da infância
do sol e das sombras gravadas
reverso da cidade
inaudível o ruído do movimento longínquo
zumbe no zunzum zonzo
de uma debulhadora zunindo

coisas paradas
homens mulheres
lentas ciganas
matam a sede
no chafariz secular

só o mistério do silêncio
relembra à alma
como era outrora

G.M.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

no Outono

(Edward Hopper)




no Outono começa
o crepitar do lume
nas paredes quentes
da casa

no Outono as palavras
recolhem-se em busca
do calor maior
e só
vestidas de muitos trapos
saem à rua

domingo, 22 de novembro de 2009

Menina ágil




(à Marta)

menina ágil
magrinha
e curva haste
de lábios molinhos
repolhudinhos
encarnadinhos
e uns olhos d'água
com um receio triste
e resignado
de ser abandonado
aquele corpo à força
separado
do corpo da mãe

a menina hábil
vem sentar-se
em silêncio
e devagarinho
arranja um cantinho
encostada à mãe




quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Ilha do Fayal




    
   Humildemente aceito o meu corpo virgem perante a terra açoreana. Saber a virgindade é aguardar pacientemente a penetração. O corpo e a terra terão que percorrer os caminhos magnéticos para a união - debaixo do manto de nuvens, brotará o líquen.

   Será de fogo esta gente que consome a vida que o vulcão gerou? Ou será a larva que arranha a terra queimada? Ou apenas uma espécie animal como as vacas, imagem de silêncio em comunicação pacífica com a terra verde? Ou o servo das hortências, dos agapantos, dos metrosíderos, das rocas de Vénus, o servo da preservação da beleza e do encantamento?



 
Quem desce à Caldeira é porque quer pisar o âmago do vulcão extinto? E não descansa enquanto o não pisou para que tenha a certeza que está extinto!
  Em cima, no alto da cratera, eu lamento as vísceras fossilizadas do bicho ígneo que morreu. Ou que teve ali o seu parto de fogo. São os órgãos esterilizados do corpo vulcânico prontos para a observação e os estudos anatómicos dos aprendizes de fisiologia. Mas sinto já as fibras viscosas de certas zonas húmidas, a languidez macia da vida palpitante que renasce da dor.


 O silêncio petrificado no lugar do amigo que parte e a visita fantasmática ao deserto do vulcão dos Capelinhos.
  A terra estoira sob os nossos pés pesados e, em fila, os adultos e as crianças, caminhamos segurando o pasmo, todos recém-nascidos para a imensidão crestada que nos cerca.
  Clamamos palavras metálicas frente às montanhas rachadas e vozes telúricas ecoam em círculos cónicos até ao fulcro intestinal oculto.
  Como uma ostra que escuta a morte no embalar das águas, um menino esmaga as pernas e recusa o andar.
  No vulcão extinto, as crianças choramingam por entre as pedras negras e inventam a angústia da impertinência.
  E mesmo o escalador aventureiro traça em subterfúgios o regresso.
  
 Pelas noites, no brilho das águas lentas se reflecte a luz - espelho das almas ausentes e incautas.
  Na terra, a festa, o bulício, os corpos em cor, a música pesada nos altifalantes. No mar, os negros lençóis de linho resplandecente.
 
As mulheres do Faial prendem os gestos no acto de um cigarro. Foi tarde já que as mulheres da ilha descobriram a âncora!

 Nas ruas, debaixo dos meus passos, rangem segredos guardados nos sulcos selados de imensos marinheiros. Passeiam a meu lado tatuagens estranhas nos corpos torrados de jovens homens enormes e distantes.

 O Clube Naval é como a água deste mar - dentro dele, somos só corpos nus. Ou nadamos bem e a água nos envolve como líquido amniótico. Ou não aprendemos a nadar e a água sorve-nos, bichos insignificantes, a alimentar as abróteas e os peixões.


   O Pico, o seio encantatório, a mágica mama erótica! Nunca demasiado maternal porque sempre parcialmente oculta, sempre virtualmente fugidia - essa ilha deitada ao sol que levanta o mamilo enebriado para o êxtase voyeur dos olhares faialenses.

  Nos dias em que um soutien de nuvens esconde cruelmente o Pico, a ilha do Faial espera, letárgica e triste, o regresso pródigo da Musa.

  O revolver das águas na noite conserva o canto sedutor da Sereia.

  Toco os dedos nos contornos precisos da montanha do Pico. E a linha do imenso mar prateado que a continua é um ventre levemente abaulado que os dedos suaves acarinham.
  Lua de Agosto, enorme e convergente, banhando de luz as negras águas carentes!




 Passeamos ao longo do muro infinito do paredão e dizem-me que o Porto de Santa Cruz não é mais que qualquer velho porto italiano ou grego ou espanhol.
  Todos os portos lembram outros portos, sobretudo os portos por conhecer, e é essa a universalidade que jorra desta fonte.

   O tempo fustiga os corpos da gente açoreana. Pela imprevisibilidade! Ou pela previsibilidade inquieta dos experientes dos sinais.
  O ameno e perfeito, sempre efémero, como o excessivo e incómodo ou infernal, no tempo de um dia todos os momentos são compostos de mudança. E assim o microcosmos insular partilha da totalidade caleidoscópica do mundo.

   O mel da poesia está no Pico do sonho de cada ser.

      

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

não não não




não não não
não se vislumbra salvação
quando morre o nosso cão

mergulha-se a pique
num vórtice sem fim
a perda o vazio
uma raiva ruim

não não não
na outra esfera
onde vive o meu cão
ele espera por mim
e pela ressurreição





domingo, 15 de novembro de 2009

Ave

(René Magritte)



 
a ave rasga a nuvem
e a nuvem fecha-se
como que intocada

ser ave ou nuvem
rasgar ou ser rasgada
passar leve pelos corpos brancos
e lá deixar o lugar fechado
da passagem breve




domingo, 8 de novembro de 2009

A vida

(René Magritte)



 
a vida
é vento
que abana forte
o corpo lento

a vida
é caule
de tenro cereal
que cresce cego e mole
rumo ao sol

a vida
é terra prometida
que luz no horizonte
brumosa indefinida
o repouso da poeira brilhante
deixará aos olhos
o castelo triunfante




terça-feira, 3 de novembro de 2009

Desilusão

(Edward Hopper)



 
desilusão
túlipa roxa
murcha
na margem

vozes duendes
voando doentes
na trôpega aragem

gota de chuva
exausta perdida
no pântano
caída




domingo, 1 de novembro de 2009

Ode à constipação

(Pablo Picasso)




lânguida e morna a constipação
eleva os mortais um pouco acima
da banal superfície
e imundície das ruas

ousados germes que nos distanciam
e aliviam da rotina ofegante
febril anestesia que nos enuvia
e desatrofia para voos rasantes

ah, reservada constipação
bebo da taça enebriante
do teu líquido etílico
e cambaleante me afasto
do templo de dioniso

escorrem-me as lágrimas
pelo rosto quente
oh, constipação borbulhante
sinto o pesar dos ossos frontais
e a mucosa das narinas
ouço fervilhar

louvada constipação,
embala-me no sono vago
que o calor da lã aquece
o frio arrepio da pele