quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Véspera de aniversário




este é o último dia de antes
de antes da passagem para o longo lado do lodo
do lodo do caminho e do cansaço
do cansaço adoentado e maquinal da passagem dos dias

este é o último dia de antes
de antes da festa que se fará não desejada
não desejada mas automaticamente festejada
festejada com alegria em desânimo sombreada

este é o último dia de antes
de antes dos dias que se contam como contas
como contas de um rosário que se desfia
se desfia conta-a-conta dia-a-dia






terça-feira, 27 de outubro de 2009

Despedida

(Salvador Dalí)



 
foram gestos e volúpias
esperanças e ansiedades
foram fugazes meneios
e desesperos vorazes

tudo foi
e foi passando
andará noutros lugares
outras dádivas achando
mais generosos manjares

neste adeus de despedida
neste cais de onde partiu
tomba o vinho da partida



domingo, 25 de outubro de 2009

O telefone

                              (Salvador Dalí)



1                                                                                                     
o telefone

a náusea
a pedra em que tropeço
o negro
o escuro

a dor
de lhe pegar
ou não pegar

2

o telefone

uma torneira
que posso abrir
para o exterior de mim

coisa nenhuma me obriga

prefiro não abrir





terça-feira, 20 de outubro de 2009

Poesia




 
na hora obscura
no limiar da gruta
a poesia espreita

só na encruzilhada
se juntam os caminhos todos

os olhos fecham-se
e o corpo e o espírito
podem escutar-se

dos lugares profundos
os raios desprendem-se
luminosos




segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O tempo




vou andando
e pensando no tempo

o tempo que se agarra
aos meus sapatos
e se cola e não larga

o tempo que ficou
com marcas
nas pegadas dos meus passos

o tempo que não está
nas pedras do passeio
que não pisei ainda
e não sei
se passarei por lá




domingo, 18 de outubro de 2009

Lisboa




Lisboa está
em recortes de espera
ao sol e ao tempo
velho e inerte

a luz se esbate
e cobre as sombras
de casas de mulheres velhas
e ruínas de guerreiros antigos

em Lisboa a luz se fixa
nas paredes brancas
e fica branca à espera




terça-feira, 13 de outubro de 2009

Séraphine de Senlis




 
e o anjo do Senhor anunciou uma Séraphine:

«Avé, Séraphine, cheia de talento,
a luz da pintura ilumine a tua vida
em casas de ricos, ganha o teu pão
mas bendita sejas, Séraphine, entre as mulheres
benditas como tuas obras de flores malditas
flores nascidas do teu ventre, Séraphine. »

Santa Séraphine, mãe de obras de arte
rogai ao génio que a loucura depois
sempre e na hora da nossa morte!

Assim saiu e desta maneira
um caso que não foi de bricadeira







O árabe e a judia




 
amantes, o árabe e a judia
são obreiros voluntários na construção da paz
dia a dia arrastando rochedos incansáveis
subindo exaustos como encostas do mundo

nas mãos empunham o facho do amor
derramando luz na escuridão
no ódio cego do oriente em dor

diante do exército, o árabe e a judia
como capitães dos cravos de abril
comandam um sonho de paz e alegria




quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Praia de Outono





águas do mar sereno
onde eu banhei
areal solitário e manso
por onde caminhei

breve o inverno virá
e uma tempestade,
o mar galgará dunas
 destruirá casas

estes são os dias cálidos
e a praia calma
do outono fugidio




segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Pippi e a fada da sorte




 
Era uma vez uma Pippi famosa
não a outra sueca de altas pernas
mas uma cadela pequena e formosa
de pêlo suave como fofas penas

um dia, encontrando-se sem dona,
sozinha numa ilha do Algarve
partiu com siso no barco da carreira
relapsa e ignorada a passageira

chegada ao cais da vila
foi cheirando a relva, como flores
as pedras, as ruas, os vapores
sem trela nem voz a conduzi-la

e, assim, com a fada da sorte como guia
chegou, enfim, à casa onde vivia
e, como abrir uma porta não sabia,
dirigiu-se à vizinha que a chave possuía

eis como o engenho e a arte da Pippi
corre nas bocas da gente dali