terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

guardo uma frase

(Giorgio de Chirico)


guardo uma frase
num bolso oculto
até dos deuses

espera saborosa
de um encontro azul

rosa que entrará no teu corpo
e o despertará

e abrirá no teu rosto
um momento
e o teu olhar esquecerá o tempo

guardo uma frase
que é cofre invisível
e as palavras não são a chave

ponte de pedra
que bem distingue a outra margem

brinquedo que encanta o menino
sozinho no quarto

bilhete de amor
que se aperta na mão
e se esconde no livro da carne

guardo uma frase
e sem ela
como te guardaria a ti, não sei






quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

a poesia prende o real

(Pablo Picasso)

a poesia prende o real
a vida a morte a natureza
a criança a dor o amor

e em inclinado estirador
o poeta-arquitecto-desenhador-ilusionista-pintor
com artes verbais
na ponta da varinha de condão
traça paravras-traços
pinta com palavras-tintas
um universo um cosmos
uma construção
a obra mágica do momento




terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

o mar é um polvo gigante

(Édouard Manet)

o mar é um polvo gigante
em dias de brisas raiantes
estende com volúpia os braços
sobre quentes areias carentes

mas acautelem-se os ulisses incautos
em noites de ventos uivantes
o monstro lança tentáculos e ventosas
e quebra e suga e corrói
invade alaga destrói
derruba devasta mata

que ogre dissimulado
que extreminador implacável
que dragão desencantado
é esta matéria esta energia
este macho viril que copula a terra


domingo, 14 de fevereiro de 2010

partida de carnaval

(Jackson Pollock)

que GRAÇA neste dia
que acaso engraçado
o dia de CARNAVAL
no DIA DOS NAMORADOS

vermelho o coração
vermelho o entrudo
a FESTA e o AMOR
para quem tem tudo

e se o NAMORADO
como é carnaval
vier MASCARADO

e se a NAMORADA
cravar no peito um PUNHAL
crendo-se enganada

o vermelho e a máscara
o sangue e a farsa
cumprem o ritual
no cortejo do FUNERAL


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

o dia


estou colada no dia
que emerge e alarga
tentáculos por casas e ruas

alongo-me na luz
inevitavelmente
e percorro todos os lugares
do labirinto
com a certeza mecânica
dos velhos monstros sagazes

só que eu preferia
alimentar-me
de densos perfumes naturais
e do calor e do vento
que é livre e suave



terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

hoje não gosto do Tejo



 
hoje não gosto do Tejo
tem manchas escuras
e outras falsamente prateadas
e eu não vou, e ainda bem
no barco indeciso e solitário
de vela encrespada e ar enojado

um vento sujo leva-me
arrepiados os cabelos
uma poeira cortante
cobre-me os encolhidos póros
e eu sinto só a minha pele terrosa
e vejo, quase não vejo
papéis tresmalhados rasgados
de vidas ausentes
derramadas
no lixo que corre no Tejo

hoje não gosto do Tejo
nem mesmo quero olhá-lo desta margem cinzenta
onde morcegos assustam gaivotas
morcegos-gente que os corvos sugaram
e lançaram ali
à espera da tarde que passe
e da noite que não chegue
gente que não olha o Tejo
nunca olhou o Tejo
só espera
com os corpos em talas
e os corações em gaiolas

hoje não gosto do Tejo
quero ir-me embora
no meu quarto já não vejo o Tejo
nem gente guardada
em faixas paralelas
tão perto e tão longe do Tejo







sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

viajamos de mãos dadas

(Norman Rockwell)



viajamos de mãos dadas
num comboio a alta velocidade,
nós não damos por nada
e a vida tanto que corre...

mas no nosso rosto há brechas
que o tempo indelével marcou
nós não demos por nada
a vida é que não parou

não sei se seremos um dia
como a erva doce e húmida
que escorre na ruína dos muros
carunchosos velhos escuros...





quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

tanta gente

(Norman Rockwell)



não me comove
tanta gente
que passa a meu lado

está
num tempo possível
disponível

fala
com olhos que não sei que esperam
para olhos
que não param
nem querem esperar




segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

no jacuzzi

(Estevan Vicente)



entremos nesta solfatara
quente a borbulhar
esqueçamos a morte
e o pavor

deixemos o corpo
suspenso
na força viril
dos jactos de água
vergastado
nas paredes elásticas
e macias do óvulo

mãos de água
mãe de água
neste paraíso de massagem
até a angústia bravia
escorre e alivia