sábado, 27 de março de 2010

não ter um grande desejo




 

não ter um grande desejo
é perder-se
em desejos caseiros
amarelados e foscos

é perder-se
em pântanos de lama
com anéis de brilhantes
repelentes

é perder-se
em esgares brancos
dormitando
por ruas vazias

é perder-se
perder-se
sem nau nem proa
nem margem nem porto



sábado, 20 de março de 2010

na Primavera

(Pablo Picasso)



 
na Primavera
não devia haver morte
nem doença nem lástima
nem ruas sebentas e pegajosas
nem gente trôpega e andrajosa
nem céus negros
nem rostos sombrios

mas há!

o dia da árvore
o dia da poesia
os mercados de flores
anunciam-se por teimosia
mas o Sol do primeiro verão
o ar morno e perfumado
que invade o corpo
e lhe segreda
- está aqui a felicidade!

onde está?


sexta-feira, 19 de março de 2010

André Rubliov


(o filme de Andrei Tarkovsky) 


André Rubliov
ou o olhar sossego

irmão André Rubliov,
a água é um mosteiro
onde se chora a dor
da criação

a água, irmão, é um tufão
que esconde na terra
os bárbaros grãos
de uma traição




segunda-feira, 15 de março de 2010

o baloiço de Effi Briest


(com o filme de Fassbinder)


o baloiço de Effi Briest
leva o branco vestido
de mitos de prados
húmidos aveludados
de amores silvestres
e inquietas mimosas

como meninas
e os seus baloiços quebrados
não choram

os baloiços de todas as meninas
quebraram-se em manhãs doiradas
e esconderam-se em sótãos
de histórias inefáveis

sexta-feira, 12 de março de 2010

essa fibra que me tece

(Edward Hopper)



 
essa fibra que me tece
não é linho nem é seda
é o aço das couraças
dos guerreiros doutras eras

ficou esquecida e aberta
qualquer articulação
e só quem passa de fronte
pode entrar
e morar dentro
do fundo do coração



terça-feira, 9 de março de 2010

é densa a vida

(Giorgia O'Keeffe)



 

é densa a vida
e de seda as mãos
que se demoram noutras mãos
como corolas doces
ao calor do sol

tecem-se fluxos densos
nos lugares outrora nus
e a tinta da china se enche
com traços geométricos
como estrelas cadentes
a folha branca do dia de papel




segunda-feira, 8 de março de 2010

os velhos choram

(Arshile Gorki)


 



os velhos choram
lamentam a sua sorte
choram a sua morte

a palavra - última -
é uma nascente de lágrimas
que mostra nua
uma autopiedade molhada

nos últimos dias
da sua vida longa
os velhos visitam
uma última vez
na sua memória longínqua
os seus prazeres e sonhos
os seus saberes e afectos
e choram
choram




sábado, 6 de março de 2010

Ilha da Madeira

(Turismo da Madeira)

  Subíamos a montanha lado a lado. A camioneta era o nosso tapete-voador. Mais lento, é certo, mas mais em contacto com a terra.
   E aquela terra era o mais importante para nós. Queríamos descobri-la, senti-la, como o Paraíso em que nunca tínhamos conscientemente pensado. Aliás, renegávamos conscientemente qualquer Paraíso. Mas ali, parecia o Paraíso, era o paraíso.
  Os nossos olhos abriam-se para a chuva que tornava tudo mais concreto, que enchia os espaços vazios, dando-lhes vida, fazendo-os compactos e deslizantes. Eu sentia-me penetrar naquela água, sentia que o mundo me tocava. Tu, acho que começaste a sentir através de mim.
 
 
    Aquela subida para as nuvens, entre tantos verdes, obrigava-me a sair de mim. Eram espirais de verdes e verdes por onde escorria água numa intensidade esfusiante. O verde, a água e uma tonalidade progressivamente esbranquiçada apoderava-se de nós.
   A camioneta entrava nesse reino vaporoso. As montanhas mostravam formas, cada vez mais esguias, mais fálicas. Por elas, saía seguramente toda a tensão que se acumulava nos vales, nos interiores. Era a grande libertação. E tudo leve, branco, aquático e verde. E sempre diferentes, sempre mais intensas todas as sensações.
 

  No cume de alguns montes, havia árvores de copas muito largas e redondas. Todas juntas, fazendo um grande cogumelo. Era, por certo, a cópula natural, a festa sensual e permanente da Natureza.
   O que nós sentíamos era o que todas as folhas sentiam, o que a água sentia. Nós, no alto daquelas montanhas, deitávamos vida e amor pelos póros e apertávamos as mãos com imensa força. Era difícil suportar toda aquela vontade de explodir.




  (Este texto foi escrito após uma viagem à Ilha da Madeira feita há muitos anos atrás. Agora, é uma forma de fazer lembrar a beleza desta ilha, depois da destruição de 20 de Fevereiro.)