domingo, 22 de novembro de 2009

Menina ágil




(à Marta)

menina ágil
magrinha
e curva haste
de lábios molinhos
repolhudinhos
encarnadinhos
e uns olhos d'água
com um receio triste
e resignado
de ser abandonado
aquele corpo à força
separado
do corpo da mãe

a menina hábil
vem sentar-se
em silêncio
e devagarinho
arranja um cantinho
encostada à mãe




quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Ilha do Fayal




    
   Humildemente aceito o meu corpo virgem perante a terra açoreana. Saber a virgindade é aguardar pacientemente a penetração. O corpo e a terra terão que percorrer os caminhos magnéticos para a união - debaixo do manto de nuvens, brotará o líquen.

   Será de fogo esta gente que consome a vida que o vulcão gerou? Ou será a larva que arranha a terra queimada? Ou apenas uma espécie animal como as vacas, imagem de silêncio em comunicação pacífica com a terra verde? Ou o servo das hortências, dos agapantos, dos metrosíderos, das rocas de Vénus, o servo da preservação da beleza e do encantamento?



 
Quem desce à Caldeira é porque quer pisar o âmago do vulcão extinto? E não descansa enquanto o não pisou para que tenha a certeza que está extinto!
  Em cima, no alto da cratera, eu lamento as vísceras fossilizadas do bicho ígneo que morreu. Ou que teve ali o seu parto de fogo. São os órgãos esterilizados do corpo vulcânico prontos para a observação e os estudos anatómicos dos aprendizes de fisiologia. Mas sinto já as fibras viscosas de certas zonas húmidas, a languidez macia da vida palpitante que renasce da dor.


 O silêncio petrificado no lugar do amigo que parte e a visita fantasmática ao deserto do vulcão dos Capelinhos.
  A terra estoira sob os nossos pés pesados e, em fila, os adultos e as crianças, caminhamos segurando o pasmo, todos recém-nascidos para a imensidão crestada que nos cerca.
  Clamamos palavras metálicas frente às montanhas rachadas e vozes telúricas ecoam em círculos cónicos até ao fulcro intestinal oculto.
  Como uma ostra que escuta a morte no embalar das águas, um menino esmaga as pernas e recusa o andar.
  No vulcão extinto, as crianças choramingam por entre as pedras negras e inventam a angústia da impertinência.
  E mesmo o escalador aventureiro traça em subterfúgios o regresso.
  
 Pelas noites, no brilho das águas lentas se reflecte a luz - espelho das almas ausentes e incautas.
  Na terra, a festa, o bulício, os corpos em cor, a música pesada nos altifalantes. No mar, os negros lençóis de linho resplandecente.
 
As mulheres do Faial prendem os gestos no acto de um cigarro. Foi tarde já que as mulheres da ilha descobriram a âncora!

 Nas ruas, debaixo dos meus passos, rangem segredos guardados nos sulcos selados de imensos marinheiros. Passeiam a meu lado tatuagens estranhas nos corpos torrados de jovens homens enormes e distantes.

 O Clube Naval é como a água deste mar - dentro dele, somos só corpos nus. Ou nadamos bem e a água nos envolve como líquido amniótico. Ou não aprendemos a nadar e a água sorve-nos, bichos insignificantes, a alimentar as abróteas e os peixões.


   O Pico, o seio encantatório, a mágica mama erótica! Nunca demasiado maternal porque sempre parcialmente oculta, sempre virtualmente fugidia - essa ilha deitada ao sol que levanta o mamilo enebriado para o êxtase voyeur dos olhares faialenses.

  Nos dias em que um soutien de nuvens esconde cruelmente o Pico, a ilha do Faial espera, letárgica e triste, o regresso pródigo da Musa.

  O revolver das águas na noite conserva o canto sedutor da Sereia.

  Toco os dedos nos contornos precisos da montanha do Pico. E a linha do imenso mar prateado que a continua é um ventre levemente abaulado que os dedos suaves acarinham.
  Lua de Agosto, enorme e convergente, banhando de luz as negras águas carentes!




 Passeamos ao longo do muro infinito do paredão e dizem-me que o Porto de Santa Cruz não é mais que qualquer velho porto italiano ou grego ou espanhol.
  Todos os portos lembram outros portos, sobretudo os portos por conhecer, e é essa a universalidade que jorra desta fonte.

   O tempo fustiga os corpos da gente açoreana. Pela imprevisibilidade! Ou pela previsibilidade inquieta dos experientes dos sinais.
  O ameno e perfeito, sempre efémero, como o excessivo e incómodo ou infernal, no tempo de um dia todos os momentos são compostos de mudança. E assim o microcosmos insular partilha da totalidade caleidoscópica do mundo.

   O mel da poesia está no Pico do sonho de cada ser.

      

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

não não não




não não não
não se vislumbra salvação
quando morre o nosso cão

mergulha-se a pique
num vórtice sem fim
a perda o vazio
uma raiva ruim

não não não
na outra esfera
onde vive o meu cão
ele espera por mim
e pela ressurreição





domingo, 15 de novembro de 2009

Ave

(René Magritte)



 
a ave rasga a nuvem
e a nuvem fecha-se
como que intocada

ser ave ou nuvem
rasgar ou ser rasgada
passar leve pelos corpos brancos
e lá deixar o lugar fechado
da passagem breve




domingo, 8 de novembro de 2009

A vida

(René Magritte)



 
a vida
é vento
que abana forte
o corpo lento

a vida
é caule
de tenro cereal
que cresce cego e mole
rumo ao sol

a vida
é terra prometida
que luz no horizonte
brumosa indefinida
o repouso da poeira brilhante
deixará aos olhos
o castelo triunfante




terça-feira, 3 de novembro de 2009

Desilusão

(Edward Hopper)



 
desilusão
túlipa roxa
murcha
na margem

vozes duendes
voando doentes
na trôpega aragem

gota de chuva
exausta perdida
no pântano
caída




domingo, 1 de novembro de 2009

Ode à constipação

(Pablo Picasso)




lânguida e morna a constipação
eleva os mortais um pouco acima
da banal superfície
e imundície das ruas

ousados germes que nos distanciam
e aliviam da rotina ofegante
febril anestesia que nos enuvia
e desatrofia para voos rasantes

ah, reservada constipação
bebo da taça enebriante
do teu líquido etílico
e cambaleante me afasto
do templo de dioniso

escorrem-me as lágrimas
pelo rosto quente
oh, constipação borbulhante
sinto o pesar dos ossos frontais
e a mucosa das narinas
ouço fervilhar

louvada constipação,
embala-me no sono vago
que o calor da lã aquece
o frio arrepio da pele