segunda-feira, 27 de setembro de 2010

li durante três dias o «Livro do Desassossego»...

(Zao Wou-Ki)




  Li durante três dias o Livro do Desassossego de Bernardo Soares a procurar incansavelmente um certo texto que eu tinha na cabeça de uma certa forma, mas que só a releitura das palavras exactas me poderia trazer sossego. Terminei o passar já quase desesperado de todas as páginas sem que nada achasse. Fechei os dois volumes do livro e pu-los a meu lado.
  De repente, peguei no volume II e abri ao acaso. Abri precisamente na página que tinha procurado durante três dias. «Quem está ao canto da sala dansa com todos os dansarinos. Vê tudo e poque vê tudo, vive tudo. [...] tanto vale o contacto com um corpo como a visão dele, ou até, a sua simples recordação.»
  Esta nossa capacidade de sentir no pensamento é realmente um espanto. Mas é uma absurda incapacidade de comunicação. Como seria sentir intensamente e simultaneamente no pensamento e no contacto? Passar à comunicação mais profunda que fosse possível imaginar? Se calhar é impossível, se calhar F. Pessoa já tinha desistido, ou então desatou a arranjar teorias alternativas para sobreviver na sua incapacidade.


  (Passagem de um diário de 1985.)


sábado, 25 de setembro de 2010

Cabanas, 1987

 



  Ancorados no pântano, os barcos inclinam pinceladas brancas na tela negra. Enrolada sobre o muro, a mulher sossega os olhos negros no reclinar das imagens.
  A trágica ambiguidade da existência, a angústia do não-entendimento, da não-compreensão, encontra o reflexo no brilho traiçoeiro do lodo repelente.
  O cigarro consome-se sofregamente. Sempre a solidão é atenta, contemplativa e sôfrega. E todo o imbecil encontra os rotineiros pretextos da intromissão.
  Um homem rápido dirige-se à mulher. Finge os movimentos de descontracção. «Tem lume, por favor?», parado olha a mulher.
  Alguns segundos moldam a estátua do tempo. A mulher comprime-se. Desenha no rosto o ódio pela aproximação. Decide-se. O lume do cigarro traça uma recta na noite negra. A mão do homem agarra-lhe o cigarro e deles se juntam incandescentes as bocas, as bocas dos cigarros.
  «Obrigado!». Um último olhar do homem fixa a mulher. Volta o corpo obrigatoriamente e, compassado, dirige o andar vergado para a viatura.
  A mulher retoma o fumo do cigarro, a longa respiração do dragão, a ponte do olhar fixada nos barcos âncorados no pântano.


domingo, 19 de setembro de 2010

o croissant

(Pablo Picasso)




   Se
eu pensar 
 que sou  um croissant
 com creme, daqueles
que chegam pela manhã,
  bem cedo, todos arrumadinhos
   sobre a mão de um pasteleiro eficiente,
 vou sentir-me morna e fofa, com uns dentes
tenrinhos enterrando-se-me na pele, hum...,
 assim volumosos, lentos, cravando-se
 duros, empurrando a carne,
 rodeando-me de lábios,
 escondendo-me na gruta
 macia, mole,
húmida de
 uma boca!


   ( Passagem de um diário de 1985)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

criança de escola

(Andrew Wyeth)



 
outrora foi o tempo
das ervas molhadas
coladas molhadas
nos sapatos de escola

e das pedras rolando
nos atalhos de terra
esperando os passos
da menina de escola
e as pontas dos pés
que as levam rolando

e andam as pedras
caladas atentas
companheiras dos pés
e dos sapatos molhados
da menina de escola




quarta-feira, 8 de setembro de 2010

usemos o corpo inteiro



 

usemos o corpo inteiro
a metade direita e a esquerda
a visível e a invisível

só todas as partes do corpo
fazem o corpo inteiro

somos os decepados do universo
os desgraçados
vítimas da preguiça
procurando pelos séculos
os bocados do corpo
abandonados

procuremos o corpo inteiro
só todas as partes do corpo
farão o corpo inteiro