quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Ilha do Fayal




    
   Humildemente aceito o meu corpo virgem perante a terra açoreana. Saber a virgindade é aguardar pacientemente a penetração. O corpo e a terra terão que percorrer os caminhos magnéticos para a união - debaixo do manto de nuvens, brotará o líquen.

   Será de fogo esta gente que consome a vida que o vulcão gerou? Ou será a larva que arranha a terra queimada? Ou apenas uma espécie animal como as vacas, imagem de silêncio em comunicação pacífica com a terra verde? Ou o servo das hortências, dos agapantos, dos metrosíderos, das rocas de Vénus, o servo da preservação da beleza e do encantamento?



 
Quem desce à Caldeira é porque quer pisar o âmago do vulcão extinto? E não descansa enquanto o não pisou para que tenha a certeza que está extinto!
  Em cima, no alto da cratera, eu lamento as vísceras fossilizadas do bicho ígneo que morreu. Ou que teve ali o seu parto de fogo. São os órgãos esterilizados do corpo vulcânico prontos para a observação e os estudos anatómicos dos aprendizes de fisiologia. Mas sinto já as fibras viscosas de certas zonas húmidas, a languidez macia da vida palpitante que renasce da dor.


 O silêncio petrificado no lugar do amigo que parte e a visita fantasmática ao deserto do vulcão dos Capelinhos.
  A terra estoira sob os nossos pés pesados e, em fila, os adultos e as crianças, caminhamos segurando o pasmo, todos recém-nascidos para a imensidão crestada que nos cerca.
  Clamamos palavras metálicas frente às montanhas rachadas e vozes telúricas ecoam em círculos cónicos até ao fulcro intestinal oculto.
  Como uma ostra que escuta a morte no embalar das águas, um menino esmaga as pernas e recusa o andar.
  No vulcão extinto, as crianças choramingam por entre as pedras negras e inventam a angústia da impertinência.
  E mesmo o escalador aventureiro traça em subterfúgios o regresso.
  
 Pelas noites, no brilho das águas lentas se reflecte a luz - espelho das almas ausentes e incautas.
  Na terra, a festa, o bulício, os corpos em cor, a música pesada nos altifalantes. No mar, os negros lençóis de linho resplandecente.
 
As mulheres do Faial prendem os gestos no acto de um cigarro. Foi tarde já que as mulheres da ilha descobriram a âncora!

 Nas ruas, debaixo dos meus passos, rangem segredos guardados nos sulcos selados de imensos marinheiros. Passeiam a meu lado tatuagens estranhas nos corpos torrados de jovens homens enormes e distantes.

 O Clube Naval é como a água deste mar - dentro dele, somos só corpos nus. Ou nadamos bem e a água nos envolve como líquido amniótico. Ou não aprendemos a nadar e a água sorve-nos, bichos insignificantes, a alimentar as abróteas e os peixões.


   O Pico, o seio encantatório, a mágica mama erótica! Nunca demasiado maternal porque sempre parcialmente oculta, sempre virtualmente fugidia - essa ilha deitada ao sol que levanta o mamilo enebriado para o êxtase voyeur dos olhares faialenses.

  Nos dias em que um soutien de nuvens esconde cruelmente o Pico, a ilha do Faial espera, letárgica e triste, o regresso pródigo da Musa.

  O revolver das águas na noite conserva o canto sedutor da Sereia.

  Toco os dedos nos contornos precisos da montanha do Pico. E a linha do imenso mar prateado que a continua é um ventre levemente abaulado que os dedos suaves acarinham.
  Lua de Agosto, enorme e convergente, banhando de luz as negras águas carentes!




 Passeamos ao longo do muro infinito do paredão e dizem-me que o Porto de Santa Cruz não é mais que qualquer velho porto italiano ou grego ou espanhol.
  Todos os portos lembram outros portos, sobretudo os portos por conhecer, e é essa a universalidade que jorra desta fonte.

   O tempo fustiga os corpos da gente açoreana. Pela imprevisibilidade! Ou pela previsibilidade inquieta dos experientes dos sinais.
  O ameno e perfeito, sempre efémero, como o excessivo e incómodo ou infernal, no tempo de um dia todos os momentos são compostos de mudança. E assim o microcosmos insular partilha da totalidade caleidoscópica do mundo.

   O mel da poesia está no Pico do sonho de cada ser.

      

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