segunda-feira, 27 de setembro de 2010

li durante três dias o «Livro do Desassossego»...

(Zao Wou-Ki)




  Li durante três dias o Livro do Desassossego de Bernardo Soares a procurar incansavelmente um certo texto que eu tinha na cabeça de uma certa forma, mas que só a releitura das palavras exactas me poderia trazer sossego. Terminei o passar já quase desesperado de todas as páginas sem que nada achasse. Fechei os dois volumes do livro e pu-los a meu lado.
  De repente, peguei no volume II e abri ao acaso. Abri precisamente na página que tinha procurado durante três dias. «Quem está ao canto da sala dansa com todos os dansarinos. Vê tudo e poque vê tudo, vive tudo. [...] tanto vale o contacto com um corpo como a visão dele, ou até, a sua simples recordação.»
  Esta nossa capacidade de sentir no pensamento é realmente um espanto. Mas é uma absurda incapacidade de comunicação. Como seria sentir intensamente e simultaneamente no pensamento e no contacto? Passar à comunicação mais profunda que fosse possível imaginar? Se calhar é impossível, se calhar F. Pessoa já tinha desistido, ou então desatou a arranjar teorias alternativas para sobreviver na sua incapacidade.


  (Passagem de um diário de 1985.)


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